"O meu tema é a família"
Entrevista com Jim Sheridan, realizador
O ciclo que a Cinemateca lhe dedica chama-se "Jim Sheridan: O Modelo Irlandês". Considera-se um modelo para alguém, em termos cinematográficos?
Oh, meu Deus... um modelo? O que quer isso dizer? Alguém que as pessoas deviam copiar? Não, na realidade, não. Mas acho que as pessoas podem ficar com essa ideia porque os meus filmes foram exibidos e tiveram sucesso fora da Irlanda, o que é a coisa mais difícil de acontecer neste negócio. Isso tem muito a ver com o facto de eu ter viajado um bocado e vivido na Inglaterra e nos EUA durante sete anos, e de saber como é que os estrangeiros olham para a Irlanda e para a sua mitologia, incluindo os seus estereótipos, que são muito fortes no cinema, nomeadamente no americano.
John Ford não é alheio a isso, pois não?
John Ford, que como sabe era de origem irlandesa, foi o primeiro realizador irlandês de peso nos EUA. O facto de ele ter começado a fazer filmes em Hollywood nos anos 20 e 30 foi um feito incrível para alguém com as origens dele. Sim, Ford criou alguns desses estereótipos, mas não o critico por isso. Nem tão- -pouco critico O Homem Tranquilo, que é acusado por muitos irlandeses de estereotipação cultural excessiva. Acho que é um filme admirável, e onde Ford, com a personagem interpretada por John Wayne, até foge a um dos mais fortes estereótipos irlandeses, que é o do guerreiro rebelde, ou o do terrorista.
Com a excepção de Get Rich or Die Tryin todos os seus filmes estão enraizados na cultura, na história e na política da Irlanda. E têm como tema comum e repetido a família, sempre em luta desigual contra alguma coisa. O preconceito social em O Meu Pé Esquerdo, o progresso e o "sistema" em Esta Terra é Minha, o Governo britânico em Em Nome do Pai, o IRA e as divisões entre católicos e protestantes em O Boxeur, a adaptação a um novo mundo em Na América. Porquê?
Tem razão. Só em O Boxeur a família está muito menos presente, o que aliás enfraquece a personagem. Isso acontece talvez por uma razão oposta à que parece mais evidente. A família do meu pai veio para Dublin no início do século XIX, e sempre manteve uma ligação muito forte ao campo, ao meio rural. O meu pai tinha dois empregos e uma pensão, que geria com a minha mãe. Quando eu era pequeno, a pensão sobrepôs-se à família, e as fronteiras entre os hóspedes, que eram praticamente como família, e a família nuclear, esbateram-se. Por isso, os meus filmes talvez sejam uma tentativa de regresso a essa família "inocente" original. Eu faço estes filmes intensos e sentidos sobre famílias, precisamente porque fui uma pessoa que não cresceu no seio de uma família normal. A partir de uma certa idade, cresci no meio de uma tribo alargada, composta por parentes e pelos hóspedes que, como pagavam a estadia e iam ficando, tornavam-se também parte dela.
E por isso tem a nostalgia dessa "família nuclear", e a expressa nos seus filmes?
A nostalgia, mas também uma falta dela, uma carência da família. É uma coisa estranha, não é? E o meu novo filme, The Brothers, é sobre uma família americana cujos filhos vão à guerra e depois trazem a guerra para casa com eles. É um remake de um filme dinamarquês, o primeiro que faço. Mas isso não me mete muita impressão, porque eu venho do teatro, onde a mesma peça é feita de dez maneiras diferentes. Por isso, acho que posso fazer uma boa versão passada nos EUA.
A sua carreira começou no teatro. Foi o teatro que o levou ao cinema? Ou sempre quis fazer cinema, mas optou pelo teatro porque não conseguiu entrar logo no mundo dos filmes?
Eu comecei muito novo no teatro. O meu pai tinha uma companhia de teatro amadora, que fundou depois da morte do meu irmão, aos 10 anos, com um tumor no cérebro. O meu pai tornou-se muito social e começou a dar espectáculos para os idosos, numa área muito pobre de Dublin. Eu comecei a encenar peças tinha 18 ou 19 anos, e logo coisas como o Dr. Fausto, de Marlowe, numa versão louca com música dos Pink Floyd, onde entrava o Neil Jordan, ou o Rei Lear, e sempre trabalhei num teatro muito pequeno. Mas tive sempre vontade de fazer filmes, e quando finalmente me estreei no cinema, percebi que tinha beneficiado muito por ter trabalhado num teatro pequeno durante tanto tempo, por ter dirigido actores desde muito novo, e por me interessar muito pelos aspectos da concepção visual e da iluminação. E claro que tive a sorte de ter encontrado alguém tão talentoso como o Daniel Day-Lewis, de quem me tornei muito amigo.
É mais fácil para um cineasta irlandês estreante fazer agora um filme do que em 1989, quando você começou com O Meu Pé Esquerdo, e pô-lo no mercado? Pergunto isto não só ao Jim Sheridan realizador, como também ao Jim Sheridan produtor.
Agora há mais dinheiro, há mais de tudo na Irlanda. É mais fácil fazer um filme e lançá-lo no mercado. Os filmes irlandeses são falados em inglês e estreiam-se nos EUA, pelo menos nas regiões costeiras e nas grandes cidades, como acontece a todos os filmes europeus. Os meus filmes sempre tiveram sucesso nos EUA, bem como na Irlanda. Só que o DVD está a dar cabo disso, está a prejudicar imenso a difusão do cinema europeu em terras americanas. Se houvesse uma política cultural europeia comum, talvez fosse possível. Mas isso é impossível, por causa das diferentes línguas, e não só. É pena.